segunda-feira, 4 de junho de 2007

O Mundo é Torto

Para legar à posteridade uma imagem positiva, reis e regimes sempre tiveram a seu favor a subserviência dos historiadores oficiais, com uma visão pra lá de parcial da realidade. Pois o regime do Pensamento Único também tem seus cronistas míopes, subservientes, cínicos e mal-intencionados. O Mundo é Plano (Ed. Objetiva, 2005) de Thomas L. Friedman, é um exemplo perfeito. A proposta ousada (para não dizer arrogante) é a de contar em 2005 uma breve história do século XXI. E a pretensão fica completa com a constante comparação com Colombo, que partiu para as Índias para provar que o mundo é redondo. Friedman teria ido para a Índia provar que ele é plano.

Na verdade, no aspecto estritamente histórico, Tom não se deu tão mal quanto se esperaria de um livro tão precipitado. Sua coleta de dados é impressionante. Para apresentar as revoluções técnicas e econômicas da última virada de século, o autor entrevistou centenas de pessoas, viajou por todo o mundo e reuniu inúmeros exemplos de cada aspecto que pretende mostrar. Apresenta-se como um legítimo jornalista-historiador. Explica a sucessão dos fatos e nos mostra como estes se encontram inter-relacionados de maneira bastante convincente. Mas a sua perspectiva é demasiadamente viciada, tornando-o míope para quaisquer dados que não confirmam sua tese.

O posicionamento de Friedman diante dos fatos é lamentável. O que a princípio parece objetividade aos poucos se mostra como adesão ideológica. Estranhamente para alguém tão informado, o autor não demonstra perceber qualquer disfunção no sistema. Ele nos explica terceirização e bolhas especulativas como se estivesse descrevendo uma frigideira. Nesse aspecto, lembra Kafka. Sóbrio e impassível. A diferença, é que a transformação de Gregori Samsa num inseto pertence ao mundo do faz-de-conta, ao contrário da semi-escravidão dos profissionais de nível médio empregados no gigantesco setor de call-center na Índia. Alguns absurdos ainda chocam.

Seu texto às vezes parece escrito por um menino. Subestima a inteligência do seu leitor de maneira afrontosa (A Guerra Fria foi um embate entre dois sistemas econômicos – capitalismo e comunismo, ele me ensinou). Num certo momento, para provar “o fato irrefutável de que mercados mais abertos e competitivos são o único caminho sustentável para que uma nação se liberte da pobreza”, ele apresenta estatísticas de redução da pobreza com dados de (pasmem!) 2015. Isso mesmo: já que os números provam como tudo melhorou entre 2001 e 2015, o sistema só pode estar correto. O autor vibra com as brilhantes soluções corporativas como o atendimento, por indianos, das reclamações de malas perdidas em vôos domésticos da American Airlines. Pérolas como essa são efusivamente louvadas, sempre apresentadas com o total de centavos de economia que representam.

Freidman tem a fórmula completa para o sucesso de países e empresas nesse futuro dourado, e todas as soluções passam pela livre economia regulada pelo mercado. Mas Tom parece ter dificuldade em entender que indicadores estatísticos são insuficientes para descrever uma realidade. Considera como surpreendente a derrota do partido que gerenciou uma taxa de crescimento no país e, após uma análise superficial conclui que “bastaria que esses eleitores rurais [...] passassem um dia em qualquer grande cidade próxima para perceberem os benefícios do mundo plano: os automóveis, as casas, as oportunidades de ensino”. Como apoio a essa explicação simplista, cita um indiano que é editor de um jornal on-line de Yale, segundo o qual a “eleição foi motivada pela inveja e pela raiva”.

Viajando pelo mundo, ele foi parar na Wal-Mart. Lá, observou que os condutores das minicaminhonetes nos centros de distribuição usavam fones de ouvido. Descobriu que eles estavam sendo orientados por computadores que avaliavam seu ritmo de trabalho. Uma voz gravada – masculina ou feminina, em inglês ou espanhol, a escolha é do empregado! – informa os robozinhos mal-pagos se eles estão atrasados. A engenhosa inovação provocou uma ‘explosão de produtividade’, ele exulta.

Embora esteja encantado com os baixos custos da cadeia de fornecimento do Wal-Mart, para ser inteiramente justo, ele reconhece de passagem alguns dos problemas da empresa, como a contratação de imigrantes ilegais, o péssimo plano de saúde dos empregados, as práticas comerciais deploráveis e ainda lembra que a lojinha de Sam Walton é a ré da maior ação coletiva de violação aos direitos civis da História. Mas o futuro é dourado, e Friedman torce para que a empresa logo entenda que existe um limite tênue entre hipereficiência e prejuízo social.

Para as empresas, muitas dicas. Aí vai uma, de um professor de administração da Ohio State University: “se você ainda tem em seu encargo alguma operação que faça uso intenso de mão-de-obra, caia fora, para não morrer de hemorragia. Não adianta cortar 5 %aqui e ali.”. A solução, claro, é a terceirização para países em desenvolvimento, que “disputam a tapa para ver quem consegue oferecer às multinacionais, além de mão-de-obra barata, os melhores estímulos ficais, os profissionais mais qualificados e os maiores subsídios, a fim de puxar a brasa do offshoring para o seu lado”.

No caso desses países em desenvolvimento, Friedman reconhece que a democracia pode tornar as coisas um pouco mais lentas por causa de dificuldade de se conseguir consenso na implementação dessas mudanças. Daí a vantagem histórica da China nesse cenário competitivo mundial. Uma ditadura prescinde desses detalhes.

Em relação aos Estados nacionais a mensagem é clara e está espalhada por todo o livro: encolha, suma, dobre-se, renda-se. Quanto mais rápido melhor. Contextos históricos de colonização, democracias fictícias e industrializações tardias e deficientes são solenemente ignorados. Em geral, é comum aceitarmos certos fatos históricos com uma incômoda resignação pelo fato de eles terem ocorrido há tanto tempo que seria inútil tentar corrigi-los. Thomas Friedman, entretanto, espera apenas uma década para tratar as picaretagens das desestatizações que varreram o Terceiro Mundo impulsionadas pelos conselhos do BID e do FMI (ler A Melhor Democracia que o Dinheiro Pode Comprar, de Greg Palast) como fatos normais, coisa já resolvida. O caso é que estamos nos acostumando rápido demais aos absurdos. E essa pressa do cronista real em contar a história desse período se deve justamente à vontade de cristalizar certos processos recentes como históricos, portanto inevitáveis.

Mas a crítica à terceirização e à revolução tecnológica que a levou a patamares surreais (jornalistas, contadores e radiologistas) que mais preocupa Mr. Friedman é sem dúvida a oriunda dos Estados Unidos (our jobs are gone, man!). Como resposta, ele apresenta uma equação segundo a qual, devido à elevação dos padrões e especificidade técnica dos serviços a maioria dos empregos cruza oceanos, mas os melhores continuam nos EUA (muito animador para quem não está em nenhuma das pontas), desde que os americanos continuem constantemente renovando seus conhecimentos. Já para rebater as críticas ao nivelamento por baixo de produtos, serviços e práticas trabalhistas, e também a exploração de trabalhadores terceiromundistas (20% do custo do norte-americano – porque será?) a conversa se inverte, e agora ele argumenta que China e a Índia estão apenas dando o primeiro passo, e logo estarão no mesmo nível que os americanos. Ele resume sua lógica maluca com aquela historinha de que com o aumento de sua renda, a srta. Unnikrishnan pode comprar aplicativos Microsoft e Coca-Cola (adoro simbolismos fáceis, estes ele me deu de bandeja). Pra encerrar a polêmica ele lembra, jubiloso, que 90% dos acionistas dessas empresas indianas são americanos e ainda acha espaço para tripudiar: “é dando que se recebe”.

Se nos atermos a visão de Friedman, a história do século XXI já está adulterada. O autor é cego para sutilezas. Não percebe que o fato de o capitalismo ter se imposto no mundo não significa que todas as facetas desse modo de produção sejam as melhores nem que sejam inevitáveis. É o melhor, e talvez esteja se tornando o único, mas não é perfeito nem deve ser tratado como imutável.

O mundo plano descrito por Thomas. Friedman já é feio por si só. A descrição desse mundo, determinista, fatalista e pontuada por um arrebatamento juvenil é ainda mais deprimente. Na capa do seu livro o planeta é retratado, significativamente, como uma moeda. E o autor só enxerga uma face. A moeda tem dois lados, senhor cronista real, e naquele que o senhor escolheu não ver (nem mostrar) escondem-se mais de 3,5 bilhões de pessoas que ainda não experimentaram plenamente os benefícios da banda larga, dos softwares de fluxo de trabalho e das cadeias de fornecimento global.

2 comentários:

Vini disse...

de qualquer jeito, ele ta ganhando dinheiro com o livro e as palestras pelo mundo afora.
a maioria das pessoas se contenta com isso.

ELMO disse...

e carrega o título de "profeta" pra cima e pra baixo. cara, leia o livro do palast que indico lá no meio. é o outro lado dessa picaretagem toda.