quarta-feira, 12 de março de 2008

Os vários lados de um leitor

(post atrasado em homenagem ao dia da mulher)





Sou um homem de muitos lados, de múltiplos interesses. Num sebo, todos eles se aguçam diante da imensa variedade de capas emboloradas e odores duvidosos.

Meu lado interessado em autodesenvolvimento às vezes me conduz para prateleira dos livros em inglês.

Essas prateleiras, às vezes por um real, nos vendem pequenas jóias. Meu lado, digamos, mais Tio Patinhas aprova esse tipo de ambiente.

Num desses cantinhos, a atenção do meu lado cinéfilo foi despertada para Notes, de Eleanor Coppola. Pocket, um pila.

É o diário da esposa de F. F. Coppola durante a produção de Apocalipse Now. A contracapa sensacionalista mostrava uma cronologia de negociações de contrato para os papéis de Willard e Kurtz. Pacino, Nicholson, Brando. Confesso, meu lado E!maníaco também ficou atiçado.

Mas foi meu lado mais sensível que gostou de Notes. É o retrato diário de uma mulher de personalidade discreta lutando para manter o casamento durante o mais excêntrico desatino do marido genial. Uma obra-prima tem sempre um preço para seu autor. Mas muitos pagam esse preço com ele, principalmente no caso do cinema, a única arte que nunca será totalmente individual. No meio do desvario nas Filipinas, cenas gravadas com atores bêbados ou drogados, temor constante de ataques rebeldes, acidentes com os helicópteros, ataque cardíaco quase fatal do protagonista, tufões destruindo o set. Mas o foco da autora é no próprio drama, abrindo mão do conforto de São Francisco, tentando criar e proteger os filhos no meio da selva, enxergando pela primeira vez a infidelidade matrimonial do marido, fincando o pé no casamento. Fantásticas as mulheres. Não conheço um homem que se submeta a tantos sacrifícios pela realização do sonho de sua mulher, e ainda aceite um papel secundário e humilhante na conquista.

Todos os meus lados estão satisfeitos com minhas idas ao sebo, menos minha “melhor metade”, que é quem tira o pó das prateleiras e depois passa cinco dias reclamando da asma.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Dylan e eu

Bob Dylan foi uma das primeiras coisas em termos de arte cultura que eu gostei por mim mesmo (na medida em que isso existe). Até então, meu gosto musical era o dos meus pais, eventualmente de alguns amigos. Descobri Dylan nos créditos de um LP da minha mãe. Peter, Paul & Mary, provavelmente. Escarafunchei, arrangei o CD de 30 anos de carreira, com caras como Eric Clapton, Eddie Vedder, George Harrison. Aquele CD virou referência para mim, um ponto de partida para meu gosto musical próprio. Ainda curto MPB, Beatles e música clássica, mas desde então eu desenvolvi minhas prórpias preferências. Coisa importante prum moleque de uns 12, 13 anos.

Em 1998 tirei a carteira, peguei o carro emprestado dos meus pais e fui dirigindo sozinho (pela primeira vez) para o show do Dylan no Opinião, em Porto Alegre. Dez anos atrás. Ontem peguei meu próprio carro, atravessei a rodovia dos Bandeirantes para assistir o Dylan no Via Funchal, em São Paulo. Eu poderia escrever umpost sobre cada música, sobre as letras, os arranjos do show, a integração com outros fans. Vou poupá-los.

Meu gosto musical não é só meu. Porque não o criei sozinho, porque não é exclusivo. Como tudo que temos na vida, é uma pequena e insignificante parte de tudo que está a nossa volta, mas representa um pequeno tesouro para nós, que o contemplamos com orgulho.

Pra quem gosta, e estiver disposto a agüentar meu limitado inglês autodidata, dê uma olhada na resenha e no set list do show de ontem. O site é fruto de colaborações semi anônimas ao redor do mundo. É meu conhecido a anos, considerado o principal meio de acompanhar as turnês do Bob, e recomendado para esse fim pelo próprio site oficial do artista. Eu o acessava semanalmente esperando confirmações e boatos sobre a chegada de Bob ao Brasil.

No show que assisti em 98, a resenha é do Eduardo Bueno, o Peninha, escritor conhecido nacionalmente por seu humor, seu conhecimento de história e péssimo gosto futebolístico. O que poucos sabem é que Peninha é um especialista em Dylan. Um boato antigo dá conta que ele quase conseguiu autorização para uma biografia oficial há alguns anos, coisa considerada impossível até hoje (o Cameron Crowe também já foi enquadrado nesse rumor).

Hoje, a resenha é a minha. Pior para os (pouquíssimos) leitores. Mas eu vou poder, de vez em quando, contemplar em silêncio uma pequena demonstração pública do meu gosto, das minhas preferências, da minha individualidade.

terça-feira, 4 de março de 2008

Que sujeito chato sou eu


Para se tornar uma pessoa totalmente feliz e integrada à sociedade, Antoine decide que precisa abrir mão de sua inteligência, doença que o tem prejudicado há desde a infância. Essa é história de “Como me tornei estúpido”, de Martin Paige. Apesar dos recursos do Google, não consegui descobrir se Paige conhece Raulzito (teoria, em Ouro de Tolo) ou Pedro Bial (prática, em Big Brother Brasil).

Mesmo sem ser totalmente original, a idéia é boa. A execução, razoável. É claro que a ironia está lá, mas um pouco evidente demais. Em função do paralelo entre os personagens, me lembrei de Zeno, mas ali sim o sarcasmo era sutil, quase invisível. Acho que Paige temeu pela capacidade de seus leitores, o que é compreensível e até sensato, mas prejudicou seu livro. Conclusão sobre literatura contemporânea, típica do personagem, aliás: se você quer escrever com inteligência e ironia, ignore todos os sinais da sua geração e não a subestime. Receita para o fracasso comercial, provavelmente.

Entre os méritos, algumas risadas, mais pra primeira metade, e a abordagem leve de Paige, que felizmente não se aprofundou demais onde não precisava. Além de Svevo, lembrei de Vonnegut, Oscar Wilde, Buñuel, Niesztche e – heresia minha ou plágio dele – Cortázar, já que a descrição dos amigos de Antoine é a coisa mais Rayuela que li recentemente. Aprovado, com restrições.