sexta-feira, 29 de junho de 2007

Esfarrapados e moribundos

Nunca trabalhei como jornalista, e não gosto dessa profissão. É um modo promíscuo de ganhar a vida. Assim como um advogado não tem amor à verdade que se compare ao seu apego aos interesses de seu cliente, um repórter não tem respeito algum pela nuance. O sentido de uma situação não é o que ele explora, na verdade ele freqüentemente evita a atmosfera, já que é difícil capturá-la num texto escrito às pressas. Suas tentativas juvenis de procurar o espírito de um evento foram decapitadas anos atrás na mesa do editor de texto; desde então ele foi adestrado a buscar fatos, ainda que invariavelmente os compreenda mal. É sutilmente incentivado, quando trabalha numa matéria, a depender de tudo, menos de sua escrita. É por isso que poucos repórteres escrevem bem”.

No prefácio de “O Super-homem vai ao supermercado” (Cia. Das Letras), Norman Mailer mostra que não é preciso ser um teórico de comunicação de massa pra chegar a conclusões negativas sobre a imprensa. Melhor ainda são as análises do efeito desse tipo de jornalismo na cosciência coletiva da sociedade e no conteúdo do discurso de qualquer sujeito exposto à mídia, especialmente políticos.

Na verdade, é pior do que isso. Daqui a alguns séculos, a inteligência moral de uma outra época talvez contemple com horror a história implantada nas pessoas do século XX por meio da imprensa. Uma corrosão do cérebro coletivo é uma das conseqüências. Outra é a deformação da consciência de qualquer líder cujas ações estejam constantemente nos jornais, pois ele foi obrigado a aprender a falar unicamente sob a forma de frases citáveis e autoprotetoras. Teve também de aprender a não ser interessantes demais, uma vez que suas idéias, nesse caso, seriam deturpadas e seu comportamento, criticado. [...] Evidentemente, os heróis que aprenderam a respeitar as limitações dos repórteres talvez nunca venham a ter de novo um pensamento original”.

[agüente ainda minha resenha sobre o livro no Falácias]

terça-feira, 26 de junho de 2007

maré baixa



pros lados de São Miguel dos Milagres, AL

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Tá, e daí?

No final do clássico “Uma Breve História do Tempo”, Stephen Hawkings desenvolve uma idéia curiosa e algo pretensiosa, mas com certeza muito interessante, pelo paradoxo que encerra e pela reflexão epistemológica que provoca. Segundo ele, os conceitos de física teórica que envolvem o estudo da astronomia (e a lógica deve valer para matemática, biologia, química) estão cada vez mais restritos a poucos cérebros capazes de entendê-los e acompanhar sua evolução, por causa do conteúdo excessivamente técnico.

A situação criou (já antes dos anos 80) um quadro inusitado. Filósofos e leigos estão fora da discussão sobre origem e destino do universo (foi-se o tempo de Aristóteles), que virou uma festinha cada vez mais privada. Mas essa exclusividade terminará um dia, alerta Hawkings. Quando os especialistas chegarem a uma conclusão, alguns intermediários vão nos explicar tudo e então poderemos discutir livremente, não mais conjeturando, mas apoiados na Verdade. Estaremos então - e assim ele conclui o livro - buscando, todos juntos, o conhecimento da mente de Deus.

terça-feira, 12 de junho de 2007

Raio-X

Com o texto didático que o caracteriza (uma virtude necessária), percorrendo caminhos tortuosos e sem forçar a barra tanto quanto normalmente faz, o jornalista Paulo Henrique Amorim tirou uma excelente foto da mídia brasileira num artigo de hoje no seu Conversa Afiada. Destaque para a penúria dos grandes órgãos e para a ridícula situação das faculdades de jornalismo do país, assunto favorito do (bem mais virulento) Ungaretti.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

O Mundo é Torto

Para legar à posteridade uma imagem positiva, reis e regimes sempre tiveram a seu favor a subserviência dos historiadores oficiais, com uma visão pra lá de parcial da realidade. Pois o regime do Pensamento Único também tem seus cronistas míopes, subservientes, cínicos e mal-intencionados. O Mundo é Plano (Ed. Objetiva, 2005) de Thomas L. Friedman, é um exemplo perfeito. A proposta ousada (para não dizer arrogante) é a de contar em 2005 uma breve história do século XXI. E a pretensão fica completa com a constante comparação com Colombo, que partiu para as Índias para provar que o mundo é redondo. Friedman teria ido para a Índia provar que ele é plano.

Na verdade, no aspecto estritamente histórico, Tom não se deu tão mal quanto se esperaria de um livro tão precipitado. Sua coleta de dados é impressionante. Para apresentar as revoluções técnicas e econômicas da última virada de século, o autor entrevistou centenas de pessoas, viajou por todo o mundo e reuniu inúmeros exemplos de cada aspecto que pretende mostrar. Apresenta-se como um legítimo jornalista-historiador. Explica a sucessão dos fatos e nos mostra como estes se encontram inter-relacionados de maneira bastante convincente. Mas a sua perspectiva é demasiadamente viciada, tornando-o míope para quaisquer dados que não confirmam sua tese.

O posicionamento de Friedman diante dos fatos é lamentável. O que a princípio parece objetividade aos poucos se mostra como adesão ideológica. Estranhamente para alguém tão informado, o autor não demonstra perceber qualquer disfunção no sistema. Ele nos explica terceirização e bolhas especulativas como se estivesse descrevendo uma frigideira. Nesse aspecto, lembra Kafka. Sóbrio e impassível. A diferença, é que a transformação de Gregori Samsa num inseto pertence ao mundo do faz-de-conta, ao contrário da semi-escravidão dos profissionais de nível médio empregados no gigantesco setor de call-center na Índia. Alguns absurdos ainda chocam.

Seu texto às vezes parece escrito por um menino. Subestima a inteligência do seu leitor de maneira afrontosa (A Guerra Fria foi um embate entre dois sistemas econômicos – capitalismo e comunismo, ele me ensinou). Num certo momento, para provar “o fato irrefutável de que mercados mais abertos e competitivos são o único caminho sustentável para que uma nação se liberte da pobreza”, ele apresenta estatísticas de redução da pobreza com dados de (pasmem!) 2015. Isso mesmo: já que os números provam como tudo melhorou entre 2001 e 2015, o sistema só pode estar correto. O autor vibra com as brilhantes soluções corporativas como o atendimento, por indianos, das reclamações de malas perdidas em vôos domésticos da American Airlines. Pérolas como essa são efusivamente louvadas, sempre apresentadas com o total de centavos de economia que representam.

Freidman tem a fórmula completa para o sucesso de países e empresas nesse futuro dourado, e todas as soluções passam pela livre economia regulada pelo mercado. Mas Tom parece ter dificuldade em entender que indicadores estatísticos são insuficientes para descrever uma realidade. Considera como surpreendente a derrota do partido que gerenciou uma taxa de crescimento no país e, após uma análise superficial conclui que “bastaria que esses eleitores rurais [...] passassem um dia em qualquer grande cidade próxima para perceberem os benefícios do mundo plano: os automóveis, as casas, as oportunidades de ensino”. Como apoio a essa explicação simplista, cita um indiano que é editor de um jornal on-line de Yale, segundo o qual a “eleição foi motivada pela inveja e pela raiva”.

Viajando pelo mundo, ele foi parar na Wal-Mart. Lá, observou que os condutores das minicaminhonetes nos centros de distribuição usavam fones de ouvido. Descobriu que eles estavam sendo orientados por computadores que avaliavam seu ritmo de trabalho. Uma voz gravada – masculina ou feminina, em inglês ou espanhol, a escolha é do empregado! – informa os robozinhos mal-pagos se eles estão atrasados. A engenhosa inovação provocou uma ‘explosão de produtividade’, ele exulta.

Embora esteja encantado com os baixos custos da cadeia de fornecimento do Wal-Mart, para ser inteiramente justo, ele reconhece de passagem alguns dos problemas da empresa, como a contratação de imigrantes ilegais, o péssimo plano de saúde dos empregados, as práticas comerciais deploráveis e ainda lembra que a lojinha de Sam Walton é a ré da maior ação coletiva de violação aos direitos civis da História. Mas o futuro é dourado, e Friedman torce para que a empresa logo entenda que existe um limite tênue entre hipereficiência e prejuízo social.

Para as empresas, muitas dicas. Aí vai uma, de um professor de administração da Ohio State University: “se você ainda tem em seu encargo alguma operação que faça uso intenso de mão-de-obra, caia fora, para não morrer de hemorragia. Não adianta cortar 5 %aqui e ali.”. A solução, claro, é a terceirização para países em desenvolvimento, que “disputam a tapa para ver quem consegue oferecer às multinacionais, além de mão-de-obra barata, os melhores estímulos ficais, os profissionais mais qualificados e os maiores subsídios, a fim de puxar a brasa do offshoring para o seu lado”.

No caso desses países em desenvolvimento, Friedman reconhece que a democracia pode tornar as coisas um pouco mais lentas por causa de dificuldade de se conseguir consenso na implementação dessas mudanças. Daí a vantagem histórica da China nesse cenário competitivo mundial. Uma ditadura prescinde desses detalhes.

Em relação aos Estados nacionais a mensagem é clara e está espalhada por todo o livro: encolha, suma, dobre-se, renda-se. Quanto mais rápido melhor. Contextos históricos de colonização, democracias fictícias e industrializações tardias e deficientes são solenemente ignorados. Em geral, é comum aceitarmos certos fatos históricos com uma incômoda resignação pelo fato de eles terem ocorrido há tanto tempo que seria inútil tentar corrigi-los. Thomas Friedman, entretanto, espera apenas uma década para tratar as picaretagens das desestatizações que varreram o Terceiro Mundo impulsionadas pelos conselhos do BID e do FMI (ler A Melhor Democracia que o Dinheiro Pode Comprar, de Greg Palast) como fatos normais, coisa já resolvida. O caso é que estamos nos acostumando rápido demais aos absurdos. E essa pressa do cronista real em contar a história desse período se deve justamente à vontade de cristalizar certos processos recentes como históricos, portanto inevitáveis.

Mas a crítica à terceirização e à revolução tecnológica que a levou a patamares surreais (jornalistas, contadores e radiologistas) que mais preocupa Mr. Friedman é sem dúvida a oriunda dos Estados Unidos (our jobs are gone, man!). Como resposta, ele apresenta uma equação segundo a qual, devido à elevação dos padrões e especificidade técnica dos serviços a maioria dos empregos cruza oceanos, mas os melhores continuam nos EUA (muito animador para quem não está em nenhuma das pontas), desde que os americanos continuem constantemente renovando seus conhecimentos. Já para rebater as críticas ao nivelamento por baixo de produtos, serviços e práticas trabalhistas, e também a exploração de trabalhadores terceiromundistas (20% do custo do norte-americano – porque será?) a conversa se inverte, e agora ele argumenta que China e a Índia estão apenas dando o primeiro passo, e logo estarão no mesmo nível que os americanos. Ele resume sua lógica maluca com aquela historinha de que com o aumento de sua renda, a srta. Unnikrishnan pode comprar aplicativos Microsoft e Coca-Cola (adoro simbolismos fáceis, estes ele me deu de bandeja). Pra encerrar a polêmica ele lembra, jubiloso, que 90% dos acionistas dessas empresas indianas são americanos e ainda acha espaço para tripudiar: “é dando que se recebe”.

Se nos atermos a visão de Friedman, a história do século XXI já está adulterada. O autor é cego para sutilezas. Não percebe que o fato de o capitalismo ter se imposto no mundo não significa que todas as facetas desse modo de produção sejam as melhores nem que sejam inevitáveis. É o melhor, e talvez esteja se tornando o único, mas não é perfeito nem deve ser tratado como imutável.

O mundo plano descrito por Thomas. Friedman já é feio por si só. A descrição desse mundo, determinista, fatalista e pontuada por um arrebatamento juvenil é ainda mais deprimente. Na capa do seu livro o planeta é retratado, significativamente, como uma moeda. E o autor só enxerga uma face. A moeda tem dois lados, senhor cronista real, e naquele que o senhor escolheu não ver (nem mostrar) escondem-se mais de 3,5 bilhões de pessoas que ainda não experimentaram plenamente os benefícios da banda larga, dos softwares de fluxo de trabalho e das cadeias de fornecimento global.